terça-feira, 1 de julho de 2014

Sobre a Educação do Olhar na Escola

1: A recepção muda tudo: Sobre a Educação do Olhar na Escola

1.1  . Lições sobre o “Olhar”

(Obra de Giuseppe Arcimboldo[1])

“Todo conhecimento comporta o risco do erro e da ilusão.”
Edgar Morin
Ao iniciar este texto, apresentamos um desafio. Olhando para o quadro acima, podemos afirmar que o que pensamos que vemos é realmente o que vemos? É possível afirmar que não há erro ou ilusão na interpretação do nosso olhar? O que vemos no quadro acima? Será um recipiente de ferro (ou de outro material) contendo legumes e hortaliças? Têm certeza? Por favor, ponham esta página de ponta-cabeça e observem novamente a figura. E então?
Como vocês puderam observar, o quadro acima reproduz um recipiente com legumes e hortaliças, mas também reproduz a figura de um homem – depende do ângulo de onde observamos a figura, depende do ponto de vista do nosso olhar.
Se olharmos mais uma vez para a figura, agora sabendo que há a imagem de um homem, nosso olhar será imediatamente atraído para os dois pontos que representam os olhos, e deixaremos de ver os legumes e hortaliças ou de apenas vê-los como parte de um conjunto de alimentos. Eles serão, a partir desse novo olhar, partes constituintes de uma figura de homem. Tudo isto porque o nosso olhar focaliza um ponto especial – os olhos. Os legumes continuam ali, expostos ao nosso olhar, mas não os registramos mais conscientemente.
Após as observações acima, é possível supor que:
nem tudo o que pensamos ver, realmente vemos;
nem sempre temos a consciência da visão de tudo o que olhamos;
nem sempre vemos a totalidade do que é objeto do nosso olhar;
nem sempre esgotamos nossas possibilidades de olhar um objeto para criar conceitos sobre ele;
nem sempre refletimos sobre o nosso ato de olhar.

Com esta constatação, concluímos que olhar é um ato nada banal, na verdade, bastante complexo e, por isso mesmo, necessitando ser analisado com profundidade. Especialmente, se colocamos a questão no âmbito educacional e, mais especificamente, no âmbito escolar.
Refletir sobre o olhar é a proposta que trazemos para este momento. E dentro desta proposta, queremos considerar os vários significados do olhar. Entre eles, os que apresentamos a seguir:

Eu vi
o cheiro do boi.
Eu vi
cheiro de pasto
maduro, crestado, amarelado.

Trecho do poema “Evém boiada!”, de Cora Coralina[1]
 
De uma praia do Atlântico

 Se o olhar visse curvo,
como se diz que é o espaço,
olhando a sudoeste
de meu atual terraço, (...)
                                   João Cabral de Melo Neto[2] 

Assim como os poetas citados, entendemos o olhar como um modo de ver que vai além do olhar primário, do olhar que só alcança as coisas imediatas e próximas. Entendemos que o ato de olhar envolve também o resgate de lembranças sinestésicas que estão guardadas em nosso interior. Assim, olhar é também usar os olhos da alma, do desejo, do sonho, da fantasia, da sensibilidade, porque olhar é ver com o “corpo todo”. Assim pensamos porque acreditamos, como Lorca[3], que “nos olhos se abrem / infinitas veredas”.
Mas que em momento algum se pense que estamos defendendo a idéia de um olhar romântico, ingênuo, acrítico, pois se acreditamos no ato de olhar que se volta para o interior, é porque consideramos que isto vai nos ajudar a olhar criticamente para o exterior. Com um múltiplo olhar – enriquecido pelos nossos diferentes sentidos – poderemos refletir melhor sobre as coisas que nos são mostradas, poderemos observá-las sob vários ângulos e, com isto, identificar as intenções que subjazem nas exposições que ocorrem nos espaços sociais.
Mas como alcançar esta competência? Como desenvolver a habilidade de ver criticamente e também com emoção? Só há uma forma: educando o olhar. E para educá-lo, precisamos, inicialmente, pensar sobre algumas questões, a saber:
1.  Como se realiza, cientificamente, o ato de olhar?
2.  Como identificar, nas interações sociais, as intenções implícitas no aparentemente inocente ato de expor imagens ao nosso olhar?
3.  Como relacionar, ao ato de olhar, as questões referentes à estética e à ética?
4.  Como desenvolver a capacidade de olhar?
5.  Como levar todas estas reflexões para o cotidiano da escola?


[1] CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. 4ª. ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1991, p. 91.
[2] MELO NETO, João Cabral de. Museu de tudo e depois (1967 – 1987). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 264.
[3] LORCA, Federico García. Os olhos. In: Obra poética completa. 3ª. ed. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1996, p. 591.

[1] Pintor italiano do séc. XVI (1527 – 1593).

1.2 . A Arte de Educar o Olhar

Como educar o olhar? Como torná-lo capaz de perceber significados e construir relações? Como desenvolver a capacidade de ver estética e eticamente as imagens que nos circundam? Cultivando a arte de ver.
Pensemos, primeiramente, em desenvolver nossa “visão divergente” que, em Pedagogia, conforme nos informa Yunes e Agostini[1], “representa uma visão múltipla das coisas, uma visão não bitolada ou enquadrada”. Uma visão que nos capacita a usufruir esteticamente as imagens e a usar a criatividade nas diferentes situações da vida.
Segundo os autores citados acima, a escola não estimula nem desenvolve nas crianças a visão divergente.
Pelo contrário, leva-as para a ‘visão convergente’, a visão domesticada, centrada, unilateral e massificada, típica do adulto ‘normal’, ‘bem-adaptado’, conformista, conservador, sem brilho, sem cor e sem caráter. (Yunes Agostine, 1998)
Embora não pretendamos, agora, discutir a relação olhar crítico X escola, fica registrada a observação acima para posterior retomada neste trabalho.
Pensemos agora sobre o nosso “olhar divergente”. Até que ponto nós o temos cultivado? Até que ponto temos permitido que nossos olhos se abram para “infinitas veredas”?
Ainda segundo Yunes e Agostini,
o ser humano é múltiplo, dispõe de várias maneiras de perceber o real ou a vida. Os aspectos afetivos não estão dissociados do intelecto e da inteligência (...)”. Uma das formas de educar o olhar, portanto, é permitir que nossas emoções participem da nossa visão cotidiana das coisas, ou seja, exercitando cada vez mais a nossa “visão divergente.

E, para tanto, podemos nos valer das artes: literatura, pintura, escultura, música, fotografia, dança, dramatização e todas as outras artes que com elas se entrelaçam.
Segundo Costa[2], a arte penetra em nós através da porta da sensibilidade, mantendo aberto esse canal com nossa natureza mais instintiva e – por que não? – animal. A cada emoção ou prazer que resulta do contato com o belo, nossos sentidos se renovam e se apuram num processo infindável de aprofundamento e recriação. A cada momento de arte, nos tornamos mais aptos à captação da beleza do mundo e de seus significados.
A arte se opõe ao mergulho no individualismo egoísta. Trabalha o incrível paradoxo de, tendo suas raízes na subjetividade e na interioridade, só se realizar em comunicação com o outro e com o mundo. Exige eco e comunicação, exige diálogo e controvérsia. Assim, mantém livres nossos canais de comunicação com o outro, ao mesmo tempo em que aprimora a consciência que temos de nós mesmos. É fonte inesgotável de interpretação e sentido. Por mais que nos detenhamos em sua observação, decifração e entendimento, mais nos confrontaremos com novas aparências e significações. E mesmo mantendo laços estreitos com seu tempo e seu espaço, a arte atravessa a história e se apresenta virgem a novas interpretações.(Costa, 1999)
Segundo De Masi[3] (2000), um dos momentos que assinalaram a passagem da nossa condição de animal a homem foi aquele em que, no nosso processo evolutivo, pudemos conceituar o belo. Desde os primeiros desenhos nas cavernas, o homem utilizou a capacidade estética para registrar as suas impressões do mundo, diferenciando-se dos outros animais, conquistando a sua condição humana e a felicidade. Isto porque, segundo o autor, “entre todas as formas de expressão humana, a estética é aquela que, mais do que qualquer outra, é responsável pela nossa felicidade”. (De Masi, 2000)
Associando as idéias de Costa (1999) e de De Masi (2000), entendemos que a arte nos humaniza e, ao mesmo tempo, nos proporciona uma sensibilidade tão intensa que pode despertar nossas emoções mais selvagens, criando um feedback para múltiplas renovações do homem. Educando o nosso olhar através da arte, estaremos sempre ratificando a nossa condição humana.
Nosso olhar, entretanto, não é apenas estimulado por imagens que produzem prazer estético ou só prazer estético. Conforme já foi observado neste texto, vivemos um tempo de saturação de imagens.
Somos, a todo momento, levados a enfrentar novos desafios, que nos exigem uma visão mais crítica e abrangente dos recursos que nos cercam, imprimindo uma nova ordem ao tempo e ao espaço em que vivemos. (Caboclo[4], 1995).
São muitas as mídias que veiculam imagens e mensagens. Precisamos aprender a olhá-las em suas especificidades, interpretá-las criticamente e usufruir dos seus benefícios.
Segundo Kellner[5], precisamos desenvolver um alfabetismo crítico em relação à mídia e construir competências para a leitura crítica de imagens. Para ele,
Ler imagens criticamente implica aprender como apreciar, decodificar e interpretar imagens, analisando tanto a forma como elas são construídas e operam em nossas vidas quanto o conteúdo que elas comunicam em situações concretas.  (Kellner, 1995)  
Analisando as imagens e mensagens veiculadas pela publicidade, Kellner considera que esta exerce uma ação pedagógica sobre as pessoas, ensinando-lhes o que precisam e devem desejar, pensar e fazer para alcançar o prazer e a felicidade. Para ele, a publicidade veicula e inculca nos indivíduos uma visão de mundo, uma ideologia de vida, valores e comportamentos que aparentemente trazem satisfação imediata.
Para neutralizar a influência ideológica da publicidade e escapar dos apelos do consumo precisamos, segundo o autor, desenvolver “competências emancipatórias”. Precisamos, ainda, “compreender como os textos culturais funcionam, como eles influenciam e moldam” nossos comportamentos.
É importante frisar que não consideramos os indivíduos totalmente desarmados para o “ataque” da mídia. Sabemos que é grande o poder de influência das imagens e mensagens veiculadas pela publicidade e pelos diferentes veículos de comunicação, mas também acreditamos, como Certeau[6] (1995), que é difícil estabelecer o grau de influência que elas exercem sobre os indivíduos, uma vez que não sabemos ao certo as maneiras de uso adotadas pelos consumidores em relação aos produtos culturais oferecidos. Estes conhecimentos, contudo, não nos isentam de incentivar a reflexão e a conscientização acerca da influência da mídia e das estratégias que podemos articular para neutralizar essa influência.
Também é importante observar que vivemos em uma sociedade do espetáculo, e que nessa sociedade todos os assuntos são apresentados como se fizessem parte de um show. Já não é fácil discernir o real do ficcional. Amor, morte, guerra, futebol, tragédia, comédia, tudo faz parte de um espetáculo cotidiano que não tem trégua. E nesse espetáculo, muitas vezes perdemos a capacidade de discernir criticamente os fatos. As coisas, segundo Chiavenato[7] (1998), “passam a ser o que aparentam. E aparentam ser pela imagem que transmitem”.
Muitas são as imagens e elas nos transmitem a ideologia da mercadoria: tudo é consumível e deve ser consumido. Segundo Lefebvre[8] (1991), essa ideologia “substitui o que foi filosofia, moral, religião, estética”. Nada mais importa a não ser realizar os desejos despertados pelas mensagens de consumo. Consumo de objetos, de drogas, de sexo, de ilusões e de vidas.
Como olhar para essas mercadorias, como assistir ao grande espetáculo da sociedade (e participar dele!) e como usufruir dos bens culturais sem perder a capacidade de fazer leituras críticas sobre os fatos e, a partir delas, realizar intervenções éticas?
Acreditamos que um caminho é não acreditar sempre no que nos mostra o nosso olhar, seja sob que ângulo estejamos “olhando” os fatos. É preciso sempre criar outros ângulos, refletir sobre as imagens que observamos a partir desses novos ângulos e entender que nada pode ser olhado maniqueisticamente: o bem e o mal (e o que é bem para uns nem sempre o é para todos) estão em todas as coisas e precisamos saber usufruir de cada coisa aquilo que ela apresenta de construtivo. Nesse sentido, o que primeiro precisamos fazer é  procurar conhecer tudo o que nos cerca, desvendar seus mistérios, penetrar em suas fortalezas, derrubar seus muros.
Começamos, neste trabalho, recordando o mecanismo do olhar. Verificamos como esse mecanismo é aproveitado e explorado pela propaganda e pela mídia. Refletimos sobre a importância das Artes e da consciência crítica em nossas vidas. Compreendemos que são múltiplos os meios de veicular  imagens e que, por isso, múltiplas devem ser nossas estratégias de interpretação.
Não podemos esquecer, também, da importância que se deve dar à observação dos diferentes modos de veicular ideologias, valores, estética e ética utilizados pelo cinema, pelo teatro, pelo rádio, pela televisão, pela internet, pelos jornais, pelas revistas, pelas músicas, pelas crônicas, pelos romances, pelos poemas, pelas charges, pelos quadrinhos, pelos comerciais, pelas comidas, pelos livros didáticos, pelos mapas e atlas, pelas disciplinas escolares, e ainda pelos pregadores religiosos, pelos artistas, pelos educadores, pelos políticos. Somente olhando-os de forma crítica é que poderemos identificar o lugar onde eles se colocam para veicular suas mensagens e que relação esses lugares e essas mensagens estabelecem com os nossos conceitos de gênero, raça, cidadania.
Por fim, precisamos descobrir as formas de desconstrução das estratégias usadas por esses veículos e indivíduos, para que possamos, quando necessário, enfraquecer seus discursos e fortalecer discursos mais compatíveis com um pensamento planetário de solidariedade e de valorização humana.


1. 3. Como Promover e Praticar a Educação do Olhar e do Pensar na Escola?

Segundo Coutinho[9] (1998), 

Cada lugar tem a sua maneira própria de ser, de se constituir, de apresentar e de se representar. A escola é um lugar como outro qualquer e também tem suas feições. Mas uma de suas características básicas é a de poder metamorfosear-se numa porção de outros lugares. Assim, a sala de aula pode vir a ser um palco de teatro ou uma sala de cinema. Tudo fica a depender da capacidade criadora de professores e alunos.

A escola pode ser ainda outros lugares. O lugar da utilização e da produção de vídeos; o lugar da leitura, análise e produção de jornais, revistas, poemas, charges. A escola é o espaço privilegiado para a reconstrução dos discursos e das imagens veiculadas nos diferentes espaços sociais.
E mais. A escola é o lugar privilegiado para promover a educação. E não podemos confundir educação com repasse de informações. As informações estão em todos os lugares e são tantas que a escola nem pode ter a pretensão de transmiti-las.  Não pode, principalmente, desperdiçar o tempo e o espaço de que dispõe para educar. E educar, para nós, corresponde ao conceito adotado por  Morin[10] (1999):
Educar é estar mais atento às possibilidades do que aos limites. Estimular o desejo de aprender, de ampliar as formas de perceber, de sentir, de compreender, de comunicar-se. Apoiar o estado de prontidão para aprender dentro e fora da escola, em todos os espaços do nosso cotidiano, em todas as dimensões da vida,. estar atento a tudo, relacionando tudo, integrando tudo. Conectar sempre o ensino com a pessoa do aluno, com a vida do aluno, com a sua experiência.
Educar é procurar chegar ao aluno por todos os caminhos possíveis: pela experiência, pela imagem, pelo som, pela representação (dramatizações, simulações), pela multimídia. É partir de onde o aluno está, ajudando-o a ir do concreto ao abstrato, do imediato para o contexto, do vivencial para o intelectual, integrando o sensorial, o emocional e o racional. O emocional é um componente fundamental da compreensão e do ensino. (Morin, 1999)

Tendo como suporte as falas de Coutinho e Morin, pretendemos enfatizar a importância da escola no processo da educação do olhar, que – como já deve ter ficado evidente – foi, em alguns momentos, a metáfora que usamos para falar de uma educação escolar crítica, atenta, interligada aos outros espaços educacionais, dispondo de professores aptos a “utilizar pedagogicamente as tecnologias na formação de cidadãos que deverão produzir e interpretar as novas linguagens do mundo atual e futuro”[11].
Como última sugestão para desenvolver um novo olhar sobre a educação, trazemos a contribuição de Gadotti[12] , que propõe a ecopedagogia:

A ecopedagogia pretende desenvolver um novo olhar sobre a educação, um olhar global, uma nova maneira de ser e de estar no mundo, um jeito de pensar a partir da vida cotidiana, que busca sentido a cada momento, em cada ato, que ‘pensa a prática’(Paulo Freire), em cada instante de nossas vidas, evitando a burocratização do olhar e do comportamento.
(Gadotti, 2000)

Não podemos nos conformar em ser ou em educar pessoas para se tornarem indivíduos “bem-adaptados”, passivos, manobráveis, burocratizados. Precisamos cultivar e incentivar nossos alunos a cultivar não apenas a visão divergente, como também, e principalmente, o espírito divergente.
Não podemos também, e isto é fundamental, fazer o discurso do olhar divergente e praticar o olhar convergente, conformista, conservador e sem brilho, durante as nossas ações cotidianas na escola. Precisamos mudar os ângulos do nosso olhar em relação aos nossos colegas, aos nossos alunos e ao nosso trabalho. Focalizar as fóveas não apenas nos anjos ou apenas nos demônios, mas atentar para o que fica relegado a uma visão periférica.
Talvez refletindo mais sobre a arte de ver e procurando exercitá-la a todo o momento, não soframos mais aquela dor sem explicação, aquela sensação de fracasso que muitas vezes acompanham o nosso trabalho. Dor e sensação que talvez sejam provocadas pelo registro inconsciente que fazemos da decepção estampada nos rostos dos nossos alunos. Um registro que as nossas fóveas não vêem, mas que os nossos bastonetes conduzem para as profundezas da nossa mente.
Para encerrar, plagiando Che Guevara, diríamos que é necessário divergir, mas sem jamais perder a ternura. Que, sem perder o prazer estético de produzir e admirar o belo, sejamos sempre praticantes e defensores da ética em todas as situações de interação com os homens e com a natureza.


1.4 . O que é Pensar?

Um texto que consideramos excelente para compreender a importância de se pensar nos é o oferecido por Rubem Alves e se intitula “As Receitas”(2000).

Quando eu era menino, na escola, as professoras nos ensinaram que o Brasil estava destinado a um futuro grandioso porque as suas terras estavam cheias de riquezas: ferro, ouro, diamantes, florestas e coisas semelhantes. Ensinaram errado. O que me disseram equivale a predizer que um homem será grande pintor por ser dono de uma loja de tintas. Mas o que faz um quadro não é a tinta: são as idéias que moram na cabeça do pintor. São as idéias dançantes na cabeça que fazem as tintas dançarem sobre a tela...
Minha filha me fez uma pergunta: “O que é pensar?”. Disse-me que esta era a pergunta que o professor de Filosofia havia proposto à classe. Pelo que lhe dou os parabéns. Primeiro, por ter ido diretamente à questão essencial. Segundo, por ter tido sabedoria de fazer a pergunta, sem dar a resposta. Porque se tivesse dado a resposta, teria com ela cortado as asas do pensamento. O pensamento é como a águia que só pode alçar vôo nos espaços vazios do desconhecido. Pensar é voar sobre o que não se sabe. Não existe nada mais fatal para o pensamento do que o ensino das respostas certas. Para isso existem as escolas: não para ensinar as respostas, mas para ensinar as perguntas. As respostas nos permitem andar sobre a terra firme. Mas somente as perguntas permitem entrar pelo mar do desconhecido.
E, no entanto, não podemos viver sem respostas. As asas, para o impulso inicial do vôo, dependem de pés apoiados na terra firme. Os pássaros, antes de saberem voar, têm que aprender a caminhar sobre a terra firme.
Terra firme: as milhares de perguntas para as quais as gerações passadas já descobriram as respostas. O primeiro momento da educação é a transmissão deste saber. Nas palavras de Roland Barthes: “Há um momento em que se ensina o que se sabe...”. E o mais curioso é que este aprendizado é justamente para nos poupar da necessidade de pensar.”(...) Aperto a tecla moqueca. A receita aparecerá no meu vídeo cerebral: panela de barro, azeite, peixe, tomate, cebola, coentro, cheiro verde, urucum, sal, pimenta, seguidos de uma série de instruções sobre o que fazer. Não é coisa que eu tenha inventado. Foi-me ensinado. Não precisei pensar. Gostei. Foi para a memória. Esta é a regra fundamental desse computador que vive no corpo humano: só vai para a memória aquilo que é objeto do desejo. A tarefa primordial do professor: seduzir o aluno para que ele deseje e, desejando, aprenda. E o saber fica memorizado de cor – etimologicamente, no coração – à espera de que o teclado desejo de novo o chame do seu lugar de esquecimento.
Memória: um saber que o passado sedimentou. Indispensável para se repetir as receitas que os mortos nos legaram. E elas são boas. Tão boas que nos fazem esquecer que é preciso voar. Permitem que andemos pelas trilhas batidas. Mas nada têm a dizer sobre mares desconhecidos. Muitas pessoas, de tanto repetir as receitas, metamorfosearam-se de águias em tartarugas. E não são poucas as tartarugas que possuem diplomas universitários. Aqui se encontra o perigo das escolas: de tanto ensinar o que o passado legou – e ensinar bem – fazem os alunos se esquecer de que o seu destino não é o passado critalizado em saber, mas um futuro que se abre como vazio, um não saber que somente pode ser explorado com as asas do pensamento. Compreende-se, então, que Barthes tenha dito que, seguindo-se ao tempo em que se ensina o que se sabe, deve chegar o tempo quando se ensina o que não se sabe. (Alves, R., 2000: 77)

Ousando conversar com o texto, logo de início, Alves nos mostra quão simplista e equivocado pode ser o discurso da escola quando omite a importância do processo de construção e prevê sucesso sem laboração. O processo de pensar requer um exercício constante de investigação e análise, portanto, que não está pronto, concretizado a priori. Ele enfoca, também, a contradição do discurso que acaba por nos induzir a erro de interpretação, quando nos fala que
não é por ser dono de uma casa que vende tintas que nos tornaremos pintores, mas, sim, quando as idéias dançantes na cabeça do pintor derem forma à tela, através da utilização das tintas para expressá-las  (Alves, R., 2000: 77)
levando-nos a perceber que nem sempre o óbvio é ou está óbvio, pois, assim como acontece com as tintas, o mesmo se dá em relação às demais idéias que compõem o imaginário social, político, econômico, educacional..., pois são  as  idéias – o bem mais precioso produzido pelos indivíduos - que constroem o mundo que temos e, ainda, o que queremos ter. Einstein já dizia que o importante não é dar boas respostas, mas, sim, fazer grandes perguntas. A partir desse pressuposto, cabe-nos pensar se estamos oferecendo situações que levem o sujeito a pensar e expressar suas idéias e conjecturas sobre os fatos e os dados apresentados, no seu cotidiano, aprendendo a lê-lo criticamente, questionando e propondo situações de superação de suas problemáticas existenciais.
A seguir, nos propõe a crucial pergunta:
O que é pensar?”, dizendo que o professor de filosofia teve a genial sensibilidade de não respondê-la, pois se o fizesse, teria cortado as asas do pensamento, não permitindo que alçasse vôo sobre os mares do desconhecido, exercitando o pensamento (Alves, R., 2000: 78).
Cabe-nos perguntar, se estamos possibilitando o pensar sobre as coisas, os objetos, os fatos e as situações ou se estamos apenas propondo reproduções, transmitindo informações já elaboradas, destituídas de sentido, implicando, inclusive, a perda do significado original.
Se, por um lado, pensar requer que tenhamos conhecimentos construídos anteriormente para nos dar sustentação para caminhar, esses saberes não nos podem aprisionar constituindo-se em verdades absolutas. Ao contrário, eles devem propiciar que possamos reelaborar permanentemente nossos pontos de vista, acompanhando a “história do presente”, mas sem perder a dimensão do olhar prospectivo (visão de futuro).
Por outro lado, pensamos por cadeia de idéias e associações múltiplas, tentando estabelecer conexões de sentido, usando alguns referenciais mais ou menos estáveis, aos quais recorremos, de memória, para conhecer mais e melhor. Daí a relevância do exemplo da moqueca do texto de Rubem Alves que enfatiza a memória de “longa duração”, termo usado pela professora pesquisadora Elvira Souza Lima para definir aquela memória que, plena de sentido, é inesquecível, em nada se confundindo com a memória de curta duração ou memorização.
A “memória de sentido”, como decidimos denominá-la, não se esgota em si mesma, servindo como base para a redimensão do próprio pensamento.
Isto nos leva a afirmar que não é a quantidade de informações “memorizadas” que determina a constituição do conhecimento, mas a forma como lidamos com estas informações – sendo águias ou tartarugas – como sugere Rubem Alves.
Ainda bem que a história não pode parar o curso do tempo e no tempo tudo pode se transformar, possibilitando a existência de uma nova ordem, muitas das vezes mais produtiva e que exige mais que perfeição milimétrica; mas que acaba por proporcionar situações que nos permitem privilegiar a criatividade, o talento, através da capacidade ética de relacionamento interpessoal satisfatório, contribuindo para a construção de um mundo melhor para se viver.
Isto nos remete à música cantada pela cantora Simone, intitulada “Como Será o Amanhã?”, de Gonzaguinha, que nos mostra a possibilidade de construir um espaço-tempo, voltado para a superação das relações adversas existentes no hoje, conhecendo, entendendo, pensando, refletindo e avaliando as mesmas, buscando as razões que lhe deram sustentação de existência no passado, para poder compreender suas causas e efeitos, podendo sempre propor novos caminhos, a serem trilhados por quem acredita no amanhã, sabendo que estão sujeitas à transitoriedade dos fatos, dos valores, das práticas.
Quando se acredita que o ser humano é capaz de sentir felicidade e de demonstrá-la ao fazer as atividades mais simples da vida, fica registrado, de modo inequívoco, que possui um coração simples, puro e receptivo às coisas que lhe possibilitam alçar vôos de imaginação, criar fantasias e quem sabe, um dia, transformar seus sonhos, sua utopia, em algo concreto, a partir de suas crenças em torná-los realidade.
Em contrapartida, se fizermos como nos sugere a fábula do elefantinho, que visão de homem e de mundo estaremos querendo formar? Cabe-nos, aqui, pensar sobre a sua mensagem.

Um treinador de circo consegue manter um elefante aprisionado, porque usa um truque muito simples: quando o animal ainda é ‘criança’, ele amarra uma de suas patas em um tronco muito forte. Por mais que tente, o elefantinho não consegue soltar-se. Aos poucos, vai se acostumando com a idéia que o tronco é mais poderoso que ele. Quando adulto, e dono de uma força descomunal, basta colocar uma corda no pé do elefante e amarrá-la em um graveto que ele nem tenta libertar-se, porque se lembra que já tentou muitas vezes e não conseguiu. Assim como, desde criança, nos acostumamos com o poder daquele tronco, não ousamos fazer nada. Sem saber que basta um simples gesto de coragem para descobrir toda a nossa liberdade.
                                                                       (Paulo Coelho)

Será educar sinônimo de adestrar? Será educar sinônimo de treinar? Ou de condicionar? Ou de subjugar? Algumas práticas pedagógicas parecem acreditar que sim. Mas a Pedagogia para o Amanhã insiste que não. Por ela apostar, radicalmente, na ampliação permanente do olhar, define educar como o processo dinâmico, contínuo, dialógico e dialético de construção de conhecimentos pertinentes, plenos de significado e sentidos, em constante transformação, no tempo-espaço-histórico-social, em busca sempre do aperfeiçoamento da existência humana.
Não é necessário que haja, apenas, uma grande quantidade de informações para se fazer um indivíduo apto a desenvolver sua própria aprendizagem. Não será, também, trazendo-o preso a amarras, mesmo que já não se façam fisicamente presentes, que vamos garantir sua melhor performance. É indispensável que se comprometa consigo mesmo, avaliando suas funções sociais e, com seriedade, busque defender conceitos que lhe dêem condição de exercer sua cidadania, comprometendo-se, íntegro e cônscio da necessidade de sua participação social, frente à formação de outros cidadãos.
Comungamos com Paulo Freire, quando nos afirma que o que mais o seduz é a beleza da pessoa humana brigando para ficar melhor.
Urge que nos conscientizemos da importância de sermos docentes, mas não apenas docentes, mas principalmente seres humanos, pois só assim poderemos facilitar a aproximação dos demais, identificando-nos com eles, ajudando-os a descobrir sua singularidade, oferecendo situações de aprendizagem que superem a simples transmissão de conhecimentos.

... É preciso reaprender a linguagem do amor, das coisas belas e das coisas boas, para que o corpo se levante e se disponha a lutar. Porque o corpo não luta pela verdade pura, mas está sempre pronto a viver e a morrer pelas coisas que ele ama. Na sabedoria do corpo, a verdade é apenas um instrumento, um brinquedo do desejo.
(Rubem Alves)

Devemos, pois, oferecer atividades em que possam falar e ouvir a respeito das realidades próprias, próximas e distantes, podendo lê-las e relê-las, através de suas falas e silenciamentos, ou seja, da polifonia produzida pelos diferentes parceiros que se inter-relacionam, de forma direta ou indireta, lidando e criando saberes, em suas trocas de experiências, em suas reflexões, compondo e propondo novas questões que os levem a perceber a necessidade de estar sempre presentes no processo dinâmico da construção do conhecimento, pois sabemos que
O futuro não é uma coisa escondida na esquina.
O futuro a gente constrói no presente.”
(Paulo Freire)

Assim, o professor precisa ter:
a)        humildade para estar aberto às questões do hoje (de cunho os mais variados), às mudanças e novas propostas que permitam entender o “aqui e agora”, através da certeza do seu inacabamento e de suas possibilidades para propor e tecer novos paradigmas, que ajudem a compor soluções plausíveis, melhorando a qualidade de vida em sociedade e criando, assim, um novo amanhã;
b)        respeito por seu pares, nas relações ética e estética, pelas descobertas científicas e tecnológicas (que compõem o patrimônio da humanidade), bem como pelas diferentes culturas, hábitos, costumes, valores, modos de se relacionar, atitudes diferenciadas (nem melhores, nem piores umas das outras), mas reconhecendo que são apenas diferentes entre si e satisfatórias para aqueles que delas participam;
c)        confiança na potencialidade de todo ser humano de construir o seu próprio conhecimento, sabendo-se num processo dinâmico de construção de saberes das mais diferentes ordens,  desde as pessoais até as coletivas, por se entender um ser histórico, capaz de fazer história, uma história que o antecede e que lhe vai suceder, crendo no seu processo de aprendizagem desde o seu nascimento até o momento de sua morte.
Portanto, deve ser e estar consciente da importância e da necessidade de sua atuação para compor um novo amanhã, comprometendo-se e fazendo parceria na construção de uma sociedade mais justa e eqüânime de oportunidades de realização a todos que nela convivem, indagando-se, a cada momento,

Por que nossa educação é tão embrutecedora e cega, se nossas crianças são tão ricas?
Por que a humanidade teme tanto a espontaneidade, se a atitude espontânea conduz tão rapidamente ao crescimento responsável?
Por que nos falta confiança no futuro, se forças sociais intensas e construtivas podem ser liberadas no indivíduo através da aceitação de alguns poucos princípios básicos? (Carl R. Rogers)

Realmente, precisamos saber exercitar o pensamento. Pensar e incentivar a pensar para poder contribuir para a transformação e a libertação, pois cremos que alguns pontos, assinalados por grandes teóricos da atualidade, poderão iluminar nossas visões para compreender as práticas vivenciadas na realidade da escola. Neste sentido, talvez seja possível romper com os valores proclamados e propor uma práxis pedagógica transformadora a partir dos valores reais, ciente das lições deixadas por Perrenoud, Freire e Toffler: “A vontade de aceitar desafio é uma questão de sentido” (Perrenoud , 2000: 48).

... o futuro não é ‘conhecível’ no sentido de uma predição exata. A vida está cheia de surpresas surrealistas... A mudança acelerante... fica sujeita à obsolescência... As estatísticas se aceleram. Novas tecnologias suplantam outras mais velhas. Líderes políticos sobem e caem. Apesar de tudo, à medida que avançamos para a terra desconhecida do amanhã, é melhor ter um mapa geral e incompleto, sujeito a revisões e correções do que não ter mapa algum...(Toffler, 1990: 20)

...São necessárias novas maneiras de pensar sobre as mudanças que vêm alterando a face de nossa civilização ao longo das últimas décadas, delineando assim um perfil mais abrangente da nova sociedade que emerge das transformações [sociais, econômicas, históricas, políticas], ou seja, de uma sociedade radicalmente diferente, movida por um novo sistema de criação de riqueza que transforma o trabalho [e as relações ética e estéticas dentro da macro e micros sociedades].
                                                               (Toffler, 1990: 33)

Ela seria tanto mais necessária porque é, como veremos, a própria organização do trabalho pedagógico que produz o fracasso escolar....                          (Perrenoud, 2000: 17)

...O apoio pedagógico deveria evitar ou atenuar a reprovação, fosse prevenindo suas dificuldades e fracassos, fosse acompanhando alunos autorizados a progredir na formação sem ter todos os conhecimentos requeridos. A idéia de base era, então, romper com a indiferença às diferenças, instaurando uma pedagogia que ainda não se chamava ‘diferenciada’, mas que se considerava como uma forma de discriminação positiva ou de educação compensatória.
                                                             (Perrenoud, 2000: 35)

Ensinar é uma especificidade humana.
Ensinar exige segurança, competência profissional e generosidade.
Ensinar exige comprometimento.
Ensinar exige compreender que a educação é uma forma de intervenção no mundo.
Ensinar exige liberdade e autoridade.
Ensinar exige tomada consciente de decisões.
Ensinar exige saber escutar.
Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica.
Ensinar exige disponibilidade para o diálogo.
Ensinar exige querer bem aos educandos.
(Freire,1999: 8/9)

A questão da formação dos professores é, inevitavelmente, levantada. A seu respeito, pode-se arriscar pelo menos uma hipótese: se não incorpora a preparação à transferência em seus próprios dispositivos, como poderia pretender favorecer, nos futuros professores, as práticas pedagógicas ‘transferogênicas’?  (Perrenoud, 2000: 70)

A substituição do trabalho bruto pela informação ou pelo conhecimento, na realidade, é o que está por trás dos problemas atuais... Portanto, o conhecimento é a chave do crescimento humano no século XXI.             (Toffler 1990: 33)

O choque do futuro olha para o processo de mudança – a maneira pela qual a mudança afeta as pessoas e as organizações. A quebra do paradigma existente deverá se concentrar nas direções destas mudanças que ainda virão para saber quem irá formá-las e como.(Toffler, 1990: 19)

O choque do futuro, como definição, baseia-se na desorientação e tensão provocada ao se tentar lidar com um número demasiado de mudanças num tempo demasiado curto – argumentando que a aceleração da história leva a conseqüências próprias, independentes das reais direções da mudança. A simples aceleração dos eventos e das fases de reação produz seus próprios efeitos, quer as mudanças sejam consideradas boas, quer más.    (Toffler, 1990: 19)

Afirmava, também, que os indivíduos, as organizações e até as nações podem ficar sobrecarregadas de mudanças demasiado cedo, levando à desorientação e a um colapso em sua capacidade de tomar decisões de adaptação inteligentes. Podiam, em suma, sofrer do choque do futuro. (Toffler, 1990: 19)
 1.5 - Para Pensar a Escola
 Escola é... o lugar onde se faz amigos. Não se trata só de prédios, salas, quadros, programas, horários, conceitos... Escola é, sobretudo, gente, gente que trabalha, gente que estuda, gente que se alegra, se conhece, se estima. O diretor é gente, o professor é gente, o aluno é gente, cada funcionário é gente. E a escola será cada vez melhor, na medida em que cada ser se comporta como colega, como amigo. Nada de ilha cercada de gente por todos os lados. Nada de ser como tijolo que forma parede indiferente, frio, só. Importantante na escola não é só estudar, é também criar laços de amizade, é criar ambiente de camaradagem, é conviver, é se amarrar nela. Ora, é lógico... em uma assim vai ser fácil estudar, crescer, fazer amigos, educar e ser feliz.   (Paulo Freire, 1999)

Não é o espaço escolar, mas o espaço da vida, onde nos lembra Brandão (1981) o “viver o fazer faz o saber”.  Da mesma forma, Iván Illich (1974) ao se questionar sobre a serventia da escola na América Latina, fazia questão de assinalar a existência de “processos educativos no interior dos processos políticos e sociais” (Illich, I., 1974: 12), não sendo estes, portanto, uma primazia da escola.Todavia, podemos dizer que é através da escola que a humanidade começou a desenvolver uma teoria da educação, ou seja, uma “pedagogia”, à qual o ato de educar deve estar sujeito. É possível afirmar, assim, que com a chegada da pedagogia e da chamada “educação formal”, vieram as regras, a organização do conhecimento, as divisões do saber e os métodos tradicionais de ensino; entretanto, é indiscutível também, que através da mesma, a educação passou a ser, como nunca antes na história da humanidade, objeto de estudo e reflexão. Desse modo, a escola foi criada com a promessa de sistematizar o ensino e favorecer a transmissão cultural. O antagonismo que a acompanha desde o seu nascimento, no entanto, é o de constituir-se de um lado “num espaço de democratização e formação individual e ao mesmo tempo de transmissão de valores coletivos e consciência social” (Puiggrós, A., 1998: 10). Todavia, esta contradição, ao oposto de diminuir-lhe a importância, apenas ampliou a necessidade de que a educação escolarizada fosse encarada como um direito universal. Análise da escola - sede da educação formal - não apenas, enquanto, um espaço de produção e divulgação de saber, mas também, enquanto um espaço de troca e intercâmbio de relações, isto é, de aprendizagem social. Embora a face relacional da escola seja um tanto esquecida, quando refletimos sobre o que seja a mesma, não há como priorizar um lado em relação ao outro. A valorização das relações interpessoais e de um clima emocional positivo, em termos de respeito e liberdade, são tão fundamentais quanto os conteúdos trabalhados em sala de aula, para o desenvolvimento do educando.  O entendimento de que o conhecimento é, simultaneamente, processo e produto de uma construção cognitiva, social e emocional nos possibilita entender a importância do ambiente escolar, já que o mesmo pode ser favorecido ou desencorajado, dependendo dos pressupostos sociopedagógicos adotados no próprio projeto pedagógico da instituição escolar e a forma como são postos em prática pelos profissionais competentes.Como esclarece Soares (1999), a escola pode ser considerada como
 um texto escrito por várias mãos e sua leitura pressupõe a compreensão não apenas de suas conexões com a sociedade, mas também das suas relações internas, ou seja, da rede de relações desenvolvidas entre os alunos, pais, professores e comunidade escolar em geral.   (Soares, K., 1999: 6)
 Nesse sentido, não há como ignorar os conflitos e tensões resultantes do relacionamento entre os diferentes membros da escola. De um lado, temos os alunos que  reclamam das obrigações, das normas rígidas, dos controles, da alienação da escola em relação ao seu mundo; de outro, temos os professores que reclamam dos salários, da inquietude dos alunos, da falta de infra-estrutura; de um outro lado, ainda, os demais funcionários da escola, que também têm suas demandas e reclamações, principalmente, no que se refere às questões de ordem política e salarial; e, por fim, os pais dos alunos, cujas preocupações e insatisfações, na maioria das vezes negligenciadas, também influenciam nesse processo. Boa parte dos conflitos em jogo na instituição escolar dizem respeito ao conflito entre as diferentes culturas envolvidas.
 1.6 - Uma Reflexão Final
 Harvey (1993), ao analisar as características da pós-modernidade, aponta para o caráter fragmentário e instável das verdades e dos discursos produzidos na sociedade (que se baseia na produção e na exploração de espetáculos e imagens da mídia que globalizam a cultura e a economia). Entender os efeitos dessa globalização e o modo como ela interfere no cotidiano da sociedade é um caminho para entender os descaminhos da escola.
Chiavenato (1998) considera que:

A globalização é um processo que age sobre o homem. As suas conseqüências sociais e econômicas estão transformando o modo de vida da humanidade. Valores éticos e morais, conceitos políticos e sociais, o uso da ciência e das artes, enfim, a cultura criada pela humanidade em milênios está sendo modificada, substituída e, de alguma forma, afetada radicalmente. (Chiaveneto, 1998)

Os reflexos dessa modificação estão presentes nas relações sociais, no modo como o homem interage com o ambiente, com seus semelhantes e consigo mesmo, promovendo desigualdades sociais, intolerâncias raciais, de gênero e de crenças, assim como uma devastação planetária.
Por isso, segundo Gadotti (2000), é preciso pensar em outra forma de globalização, “uma globalização da solidariedade, um mundialismo sustentado na unidade política de um mundo considerado como uma comunidade humana única, uma ética de governabilidade mundial”. Para tanto, é preciso pensar em planetaridade e em uma educação para o futuro que privilegie a solidariedade planetária e o respeito ao homem em sua totalidade.
Uma educação que, para ser autêntica, deve respeitar a CARTA DA TRANSDISCIPLINARIDADE[13]. Essa carta, em quinze artigos, traça um caminho novo para o homem e para a Terra, e em seu artigo 11 torna claro o pensamento que norteia este trabalho:

Uma educação autêntica não pode privilegiar a abstração no conhecimento. Deve ensinar a contextualizar, concretizar e globalizar. A educação transdisciplinar reavalia o papel da intuição, da imaginação, da sensibilidade e do corpo na transmissão dos conhecimentos. (Gadotti,2000)

A última frase desse artigo é particularmente esclarecedora quanto à importância de conhecermos a teoria das inteligências múltiplas e de as aplicarmos nas relações educativas desenvolvidas na escola.
Continuando nossa reflexão, não poderíamos deixar de recorrer a Morin (2000), para dizer, com suas palavras, como deve ser visto o homem, ou seja:

O ser humano é ao mesmo tempo singular e múltiplo. (...)traz em si multiplicidades interiores, personalidades virtuais, uma infinidade de personagens quiméricos, uma poliexistência no real e no imaginário, no sono e na vigília, na obediência e na transgressão, no ostensivo e no secreto, balbucios embrionários em suas cavidades e profundezas insondáveis. Cada qual contém em si galáxias de sonhos e de fantasmas, impulsos de desejos e amores insatisfeitos, abismos de desgraças, imensidões de indiferença gélida, queimações de astro em fogo, acessos de ódio, desregramentos, lampejos de lucidez, tormentas dementes...
         (Morin, 2000)

Contudo, parecendo desconhecer tais características humanas, os pais e a escola, segundo Korczak (1997), apropriam-se de um paradigma social de inteligência e “lutam contra todas as formas não habituais de inteligência”. Sobre as crianças, perguntam se são ou não inteligentes, quando a pergunta correta deveria ser como, de que modo são inteligentes.
Retornando ao texto de Saramago, valemo-nos de outro trecho para concluir esta reflexão inicial.
Assim como seus personagens, podemos travar o diálogo[14] que se segue:

Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.

Porém, enquanto educadores, é nosso dever articular estratégias de superação dessa “cegueira”. É tempo de ver. E, para tanto, vamos recorrer a Howard Gardner (1994) através de sua Teoria sobre as Múltiplas Inteligências para olhar os nossos alunos e, vendo-os, vermo-nos também como seres capazes de reverter o quadro que o cartunista espanhol Quino, através de suas personagens, apresenta sobre a escola:

Cabe a que perguntar: a que escola Mafalda está se referindo?. E Felipe? Tantas caras e bocas nos levam a ter que refletir sobre a construção existentes no imaginário social sobre a escola que se tem e a que se quer: a educação que se tem e a que se quer, pois a composição desse quadro de referência irá nos possibilitar olhar para a realidade, usando os olhos de ver, de perscrutar, de teorizar sobre a própria realidade vivida.
Mas sejamos rápidos nessa mudança de olhar, sejamos rápidos na transformação, pois, segundo Bartolomeu Campos Queirós[1],

O tempo tem uma boca imensa. Com sua boca do tamanho da eternidade ele vai devorando tudo, sem piedade. O tempo não tem pena. Mastiga rios, árvores, crepúsculos. Tritura os dias, as noites, o sol, a lua, as estrelas. Ele é o dono de tudo. Pacientemente, ele engole todas as coisas, degustando nuvens, chuvas, terras, lavouras. Ele consome as histórias e saboreia os amores. Nada fica para depois do tempo. As madrugadas, os sonhos, as decisões duram pouco na boca do tempo. Sua garganta traga as estações, os milênios, o ocidente, o oriente, tudo sem retorno.

E isso nos vem apontar a própria provisoridade das verdades absolutas que, ao sabor do passar do tempo, novos quadros nos apresenta, em sua constituição, em suas relações, em suas manifestações e animações, devendo ter em mente a sua capacidade de mutação processual, dinâmica, cotidiana, devendo nos colocar frente aos acontecimentos do nosso tempo, buscando olhar com olhos de ver.


[1] QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. Por parte de pai. Belo Horizonte: RHJ, 1995. pp. 71-72.

[1] YUNES, Márcio Jabur e AGOSTINI, João Carlos. Técnica ou poética, eis a questão! São Paulo: Moderna, 1998.
[2] COSTA, Cristina. Questões de arte: a natureza do belo, da percepção e do prazer estético. São Paulo: Moderna, 1999. (Coleção polêmica).
[3] DE MASI, Domenico. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
[4] CABOCLO, Eliana T. de A. Freitas e TRINDADE, Maria de Lourdes de Araújo. Multiplicidade: cada identidade uma constelação. In: SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA. Salto para o futuro: Reflexões sobre a educação no próximo milênio. Brasília, DF: Ministério da Educação e do Desporto, SEED, 1998.
[5] KELLNER, Douglas. Lendo imagens criticamente: em direção a uma pedagogia pós-moderna. In: SILVA, Tomaz Tadeu da.(org.) Alienígenas na sala de aula. Petrópolis,  RJ: Vozes, 1995. pp. 104-131.
[6] CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus, 1995. (Coleção Travessia do século).
[7] CHIAVENATO, Júlio José. Ética globalizada e sociedade de consumo. São Paulo: Moderna, 1998. (Coleção Polêmica).
[8] LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.
[9] COUTINHO, Laura. Sala de aula/sala de cinema. In: SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA. Salto para o futuro: TV e informática na educação. Brasília, DF: Ministério da Educação e do Desporto, SEED, 1998.
[10] MORIN, José Manoel. Mudar a forma de aprender e ensinar com a internet. In: op. cit.
[11] SAMPAIO, Marisa Narciso e LEITE, Lígia Silva. Alfabetização tecnológica do professor. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
[12] GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Terra. São Paulo: Petrópolis, 2000.
[13] Adotada no I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, Convento de Arrábida, Portugal, 2 a 6 de novembro de 1994, e transcrita no livro “Pedagogia da Terra”, de Moacir Gadotti, de onde retiramos o artigo comentado.
[14] É interessante observar o modo peculiar como Saramago pontua seus textos,  especialmente a forma como constrói diálogos. Diferentemente das regras gramaticais vigentes na língua portuguesa, o autor marca as falas das personagens apenas pelo uso de vírgulas e de letras maiúsculas.